Falta de tratamento da água utilizada, poluição dos mananciais, alteração no regime de chuvas e maior disponibilidade do recurso longe dos grandes aglomerados populacionais são desafios para o país, que tem grandes reservas hídricas
Em termos de água, o Brasil é privilegiado. Não tem nem 3% da população mundial, mas abriga 12% da água doce disponível no globo. Essa participação sobe para 18% quando se considera apenas a água de superfície — excluindo-se as reservas em aquíferos subterrâneos, os lençóis freáticos. As reservas superficiais nacionais somam vazões médias de quase 180 milhões de litros por segundo. Onze dos 50 rios mais caudalosos do mundo estão aqui.
O Brasil também aparece bem no subsolo: metade do território nacional acomoda 20 bacias que garantiriam uma vazão de 42,3 milhões de litros por segundo. E, como são mais bem distribuídos pelo país do que os rios e lagos, os aquíferos se revelam cruciais para abastecer mais de metade da população.
Seria um cenário perfeito, não fossem os enormes problemas de saneamento básico que o Brasil enfrenta. Em termos nacionais, três em cada dez domicílios urbanos ainda não são abastecidos com água potável. Nas regiões com menor acesso a rios, nascentes e aquíferos, o atendimento é precário. Nas áreas e bairros mais pobres, o mesmo cenário. De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), órgão federal que regula o setor, em 2015 só 29% dos brasileiros contarão com um abastecimento satisfatório.
Parte da responsabilidade é da diversidade de climas e relevos, que influencia a distribuição dos recursos hídricos pelo país. Na maior parte do Nordeste, ela é de menos de 100 mil litros por segundo. Na Amazônia (com 45% do território e 80% da disponibilidade hídrica nacionais, mas apenas 7% da população), a vazão chega a 74 milhões de litros por segundo. Ou seja, nem sempre a água abundante está onde há mais gente, o que é o primeiro e mais complexo desafio no abastecimento. Afinal, além de captar a água, é preciso transportá-la.
Poluição e estiagem
Em geral, a poluição e a redução da vazão dos mananciais em épocas de estiagem são os principais fatores responsáveis pela escassez de água na maior parte do mundo (há regiões onde a única solução é dessalinizar a água, por exemplo). Num ranking de saneamento básico elaborado pelo Banco Mundial, o Brasil é apenas o 112º lugar entre 200 nações. Estatísticas como a que aponta que, na Região Norte, somente 13% dos domicílios têm acesso a rede coletora de esgoto reforçam essa convicção. A ANA, em pesquisa divulgada no ano passado, disse ter encontrado água de qualidade "ruim" ou "péssima" em 44% dos pontos urbanos de coleta no país, contaminada, principalmente, por esgoto doméstico.
Por causa da poluição, mesmo um rio com boa vazão pode se tornar impróprio para o uso humano. Um bom exemplo é o Rio Tietê (SP), que, em seus piores momentos, ainda produz uma vazão de 60 mil litros por segundo. Acontece que, de toda essa vazão, apenas um terço é água natural; o resto é produto de efluentes domésticos e industriais não tratados, que são despejados no rio. Já sem a necessária proteção vegetal ao seu redor, reservatórios e represas sofrem mais com seca e se veem mais expostos ao assoreamento, que é o acúmulo de sedimentos no fundo.
Para piorar, desde o ano passado o país padece, em diversas regiões, de uma preocupante falta de chuvas, que colocou boa parte do país em risco real e imediato de racionamento, segundo alertaram os especialistas convidados pela Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) para um debate em junho. Faltar água nas áreas semiáridas do Nordeste já é fenômeno secular — a região viveu sua pior seca em 50 anos entre 2012 e 2013, afetando quase 10 milhões de pessoas e mais de 1,2 mil municípios. Com a mais baixa precipitação pluviométrica em décadas na Região Sudeste como um todo, não só o desabastecimento de água virou ameaça na maior cidade do país, São Paulo, como também há o temor de crise elétrica.
A Agência Nacional de Águas monitora, com os estados, 507 reservatórios no semiárido, quase todos voltados para o abastecimento. Desses, quase 50% apresentavam, em meados deste ano, menos de 30% da capacidade, uma situação pior do que no ano passado. Os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste, que respondem por cerca de 70% da geração de eletricidade, registravam, em meados de outubro, a pior situação desde 2001, quando o Brasil enfrentava racionamento de energia, apontou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS): armazenamento médio de água de 21,11% da capacidade total, contra 21,39% naquele ano.
A estiagem prolongada deixou à mostra a incapacidade do país em prover segurança hídrica — abastecimento regular e satisfatório de água — à população e às atividades econômicas, principalmente agropecuária e indústria, que respondem por 90% da demanda. O consumo, em meio a todas essas dificuldades, seguiu em curva ascendente. Em 2010, comparativamente a 2006, a retirada total de água das fontes de abastecimento subiu 29%, chegando a 2,3 milhões de litros por segundo, muito em função do aumento da demanda de água para irrigação, para viabilizar o crescimento da produção agrícola.
O Atlas Brasil — abastecimento urbano de água, publicado pela ANA em 2011, apontou aumento no consumo de 7,1% entre 2009 e 2010, alcançando 159 litros per capita por dia. Outras fontes especulam que já poderia estar em 187 litros, chegando a 320 nos grandes centros urbanos. Não é problema exclusivo do Brasil. Os países ricos têm um altíssimo grau de consumo e lideram a classificação em termos globais. Por exemplo, um americano gasta, em média, três vezes mais água que um brasileiro e duas vezes mais que um francês.
Além de, na média, o país consumir água além daquilo que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (100 litros por dia), há muitas disparidades regionais. Se o índice nacional de abastecimento é de 82,7%, no Norte e no Nordeste o atendimento é bem inferior: quatro em cada cinco pessoas moram em cidades que necessitam de ampliação do sistema de água.
Nas 100 maiores cidades, a disponibilidade hídrica é satisfatória em apenas 28%; 72% precisam de investimentos; 39%, de ampliar os sistemas, e 33%, de agregar novos mananciais, de acordo com a publicação Perdas Físicas em Sistemas de Abastecimento de Água, divulgado pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) em 2013.
Cenário ideal
Para enfrentar esses problemas, o governo federal anunciou, em 2013, um novo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que projetava a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. Porém, a proposta traçou cenários que dificilmente se materializarão.
No mais pessimista dos quadros desenhados pelo Plansab, o Brasil cresceria naquelas duas décadas a 3% ao ano, atividade capaz de viabilizar os investimentos de R$ 508 bilhões no setor. Ao governo federal, caberiam investimentos a partir de R$ 13,5 bilhões por ano, quando a média em 2012 e 2013 foi de R$ 8,2 bilhões.
O senador Jorge Viana (PT-AC), um dos autores do pedido de debate sobre as estiagens no país, acha inadmissível as crises de abastecimento ainda acontecerem. "Parece que o Brasil foi pego de surpresa com a crise de São Paulo. A ANA tem sistemas de previsão. Ela não é capaz de mudar o curso da natureza, mas tem bases capazes de prever se vai haver uma situação mais grave de abastecimento, inclusive por conta do regime de chuva", observou.
Soluções existem, diz o diretor-presidente da ANA, Vicente Andreu Guillo. Mas nem sempre elas vêm sendo adotadas a tempo, o que causa a insegurança hídrica. "Para a vontade política existir, é necessário o envolvimento da sociedade. Não há uma intensa mobilização social em relação a esse tema, proporcional ao risco que ele representa. Se a água não entrar na agenda política da sociedade, isso não vai virar realidade", alertou.
Distantes da meta
Os especialistas defendem, porém, que o enfoque deve se voltar não só para o aumento da oferta, com a construção e a ampliação de reservatórios e adutoras. Além de investimentos nas empresas prestadoras para modernizar os sistemas e reduzir as perdas, é preciso conscientizar a população sobre o desperdício.
Estamos, porém, ainda distantes de atingir essa meta. O ranking de saneamento básico divulgado pelo Instituto Trata Brasil em agosto mostrou que, em 62 das 100 cidades analisadas, as perdas ficaram entre 30% e 60% da água tratada para consumo. Noventa delas não conseguiram reduções significativas (superiores a 10%) nas perdas de água entre 2011 e 2012. O estudo estimou que uma diminuição de 10% em termos nacionais agregaria R$ 1,3 bilhão à receita operacional com a água, equivalente a 42% do investimento no setor em 2010 para todo o país.
A insegurança hídrica que a Região Sudeste experimenta agora é quase rotina no Nordeste. Preocupado com os impactos que a seca prolongada na região atendida pelo Rio São Francisco trouxe sobre a disponibilidade de água para consumo humano e atividades produtivas, o então senador Kaká Andrade (PDT-SE) cobrou engajamento do governo federal na solução do problema. "Não são raros relatos de cidades com problemas no abastecimento de água e prejuízos de agricultores que dependem de irrigação ou do transporte hidroviário, de aquicultores e empresários do ramo do turismo", disse o parlamentar.
senado federal
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